no meio do fim do mundo
cheguei no meio do fim do mundo
sem pressa com muita sede de tudo
olhei para o meio do fim do mundo
e vi gente muita gente a esperar e a chorar
cheguei no meio do fim do mundo
pensando que chegara ao fim do mundo
pelos menos foi o que pensei
pelo menos foi o que sonhei
cheguei no meio do fim do mundo
aos poucos ele dilatou-se quebrou-se
pôs-me de joelho e fez-me chorar
cheguei no meio do fim do mundo
sedenta de sede de vontade e de tudo
sedenta de amor para dar
e o fundo de mim mesma enxergar
na lente da noite maior
na lente da noite maior
caminhamos sem quê nem porquê
caminhamos sem lenço nem documento
vorazmente vou
na lente da noite maior
acordamos de um pesadelo ficcional
algo sem início nem fim
ferozmente vou
na lente da noite maior
sinto meu coração latejar
mais palavras não tenho
alegremente vou
na lente da noite maior
desconheço o começo
mal vejo o contexto
iluminada vou
na lente da noite maior
sei que sobreviveremos
em nós e mais e mais
a responsabilidade há de jorrar
meus mortos estão aqui
acordo e olho pela janela
o dia raiou
acordo e sinto a ausência
no silêncio do dia
a natureza da vida fala
estou aqui e relembro meus mortos
os que se foram
sem despedida nem abraços
o dia cala fundo em mim
meu coração destroçado
clama
uma dor sem fim jaz em mim
assim conjugo o verbo amor
e também os verbos resistir
cobrar regenerar falar clamar
dizer “exijo respeito” –
meus mortos estão aqui
laços de família
laços de família rompidos
quebrados amordaçados
quando não alterados
machucados e assassinados
corpos enterrados sem rasgos
amigos partindo afogados
no ar des-respirado
no afogamento a seco
no afogamento da secura
vozes afundam-se no mar deserto
des-respirado des-ventilado
teremos de inventar outros verbos
no desdém da vida do outro
milhões correm solto
vozes se calam afogadas
des-respiradas des-ventiladas